BIOÉTICA EM CIRURGIA PLÁSTICA

INTRODUÇÃO

A identificação do homem em sua busca pelo belo vem se expressando através dos séculos, e pelos mais diferentes grupos de povos, em uma variedade incomensurável de manifestações artísticas. Considerando que a beleza é a plenitude e sua expressão exterior é uma harmonia diferente em cada grupo étnico, o que procuramos, como cirurgiões, seria mais mitigar a deformidade do que recriar a beleza. Deve-se situar o papel da cirurgia plástica nessa busca constante do homem pelo belo, pois é nas suas limitações inerentes que encontram-se possíveis fatores de insatisfação.

A cirurgia plástica tem como objetivo proporcionar harmonia e bem-estar a pacientes portadores dos mais variados tipos de deformidades, resgatando a sua auto-estima, devolvendo a sua imagem íntima e promovendo a reintegração do indivíduo ao seu grupo social. A filosofia da cirurgia plástica é ajudar o paciente a viver bem consigo mesmo.

A importância da cirurgia plástica como especialidade cirúrgica vem crescendo significativamente. Questões de estética corporal influenciam as relações pessoais, sociais, e até políticas. Os meios globalizados de comunicação e de propaganda têm divulgado ideais de estética que muitas vezes discordam de padrões previamente estabelecidos e consagrados. Portanto, é fundamental que o cirurgião plástico exerça sua profissão obedecendo aos mais rígidos padrões de ética.

A ética é a teoria do comportamento moral dos homens, em sociedade. A ética é a ciência da moral. Ter ética é estar capacitado para um comportamento moral. A bioética pode ser definida como o raciocínio ético aplicado aos problemas do médico. Ser médico significa, sobretudo, a responsabilidade de ajudar. Daí a importância da relação médico-paciente. No exercício da medicina, a bioética leva em consideração os princípios de beneficência, não-maleficência, envolvendo aspectos de relacionamento tanto com os pacientes como entre colegas, estendendo sua aplicação a problemas sociais, econômicos e políticos, além da análise dos mais recentes desenvolvimentos tecnológicos.

A aplicação da bioética de uma forma tão abrangente tem como objetivo garantir a distribuição justa da prestação de saúde à sociedade, harmonizar os interesses individuais com os interesses comunitários, e não permitir a influência de fatores econômicos, culturais, e corporativistas sobre decisões importantes. Desta forma, a bioética contribui para que a legislação atenda aos interesses sociais da melhor forma possível.

A ÉTICA NA FORMAÇÃO DO CIRURGIÃO PLÁSTICO

O profissional médico deverá ser fiel ao cumprimento do Código de Ética Médica (CEM), que representa as normas e leis especiais que regem a atividade médica. O CEM vigente, datado de 1988, afirma que o tratamento completo do indivíduo não envolve apenas o lado biológico, mas deve incluir a perfeita integração do ser humano, tanto social como politicamente, em seu meio. Outrossim, o relacionamento médico-paciente está perfeitamente configurado e regulamentado no CEM.

As condições básicas para um bom desempenho profissional dentro da especialidade da cirurgia plástica não diferem daquelas exigidas de qualquer médico: vocação, formação moral e profissional íntegra, uma relação médico-paciente verdadeira e harmônica, e atualização científica constante. Na verdade, o médico deve possuir dois tipos de formação: uma base individual de integridade moral, e uma correta formação médica. Portanto, o ingresso de especialistas éticos na sociedade inicia-se com uma sólida educação, cabendo às faculdades de medicina exercer um papel decisivo no processo de aprendizado.

A recente popularização da cirurgia plástica levou à proliferação de instituições de ensino, sem que houvesse um estudo demográfico preciso que determinasse o número recomendável de cirurgiões para atender às necessidades populacionais. Para garantir a manutenção do alto nível de nossa especialidade, oferecendo um serviço seguro e competente à população, as escolas devem ser rigorosamente avaliadas em relação a aspectos de infraestrutura, ensino teórico, e nível de experiência prática oferecida.

O jovem cirurgião plástico deve adquirir um amplo conhecimento de cirurgia estética e reparadora durante sua formação, já que é a cirurgia plástica é especialidade única, indivisível e como tal deve ser exercida por médicos devidamente qualificados. Esta indivisibilidade é reforçada pelo fato de que qualquer procedimento em cirurgia plástica obriga o cirurgião a relevar aspectos estéticos dentro do planejamento terapêutico, visando a obtenção do melhor resultado possível. Atualmente, nas cirurgias reparadoras, o conceito do tratamento ideal inclui a reconstrução funcional aliada à obtenção de um resultado estético satisfatório que acabará contribuindo para a reorganização da auto-estima do paciente.

Em relação a aspectos filosóficos de ensino, é fundamental que a ética seja ensinada ativamente durante o curso. Fatores como fornecer acompanhamento psicológico, enfatizar aspectos humanísticos, e tornar mais interessante o estudo destes princípios são de extrema importância na adequada capacitação do aluno. Infelizmente, estas áreas tendem a ser encaradas com desinteresse, gerando graves deficiências profissionais que acabam por se manifestar no futuro relacionamento com pacientes e colegas.

Finalmente, o especialista em formação deve ser avaliado constantemente pelo corpo docente em relação ao exercício da ética em suas atividades diárias. As comissões de ética devem punir as infrações de forma exemplar, visando abolir a cultura da impunidade e estabelecer um sistema baseado no respeito e obediência aos princípios regentes da medicina.

A ÉTICA NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

A ampla divulgação da especialidade pela mídia, detalhando os progressos técnicos, avanços tecnológicos, e a conseqüente evolução dos resultados gerou pacientes cada vez mais exigentes. Por outro lado, o cirurgião plástico não deve se esquecer dos princípios que norteiam a boa relação médico-paciente, procurando conhecer profundamente a personalidade do paciente, que muitas vezes pode apresentar queixas de natureza física que acabam encobrindo um componente emocional significativo.

Os disturbios psicologicos e psiquiatricos sao extremamente comuns nos pacientes que procuram a cirurgia plastica, fazendo com que surjam ideias irreais sobre as possibilidades do tratamento, a exacerbacao de minimos defeitos (transferindo a eles a culpa por insucessos afetivos e/ou profissionais), e a possivel insatisfacao frente a um resultado tecnicamente perfeito. Portanto, o cirurgiao deve contar com o auxilio de psicologos e psiquiatras para avaliar cada caso com mais seguranca. A indicacao cirurgica deve ser considerada com extremo cuidado em pacientes paranoicos e neuroticos, pois estes apresentam uma propensao a percepcoes e pensamentos ilusorios em relacao a cirurgia e seus resultados.

As expectativas devem ser analisadas considerando-se aquilo que é considerado um resultado possível, e torna-se fundamental que o cirurgião plástico avalie se as necessidades e desejos do indivíduo são compatíveis com o que o ato operatório possa vir a oferecer. O cirurgião deve ser muito claro quanto ao alcance da cirurgia. Nunca se promete mais do que se pode dar, e tampouco se deve operar quando houver qualquer dúvida, seja da parte do paciente, seja da parte do cirurgião.

Uma discussão que vem interessando tanto juristas como os cirurgiões plásticos é a definição da especialidade como “obrigação de meios e não de resultados”. Devemos sempre lembrar que um resultado perfeito e ideal não pode ser prometido ao paciente porque jamais será alcançado. Portanto, para que o diagnóstico e tratamento acabem levando a um resultado satisfatório para ambas as partes, devemos estabelecer uma relação médico-paciente baseada em confiança, confidencialidade e comunicação adequada.

Sendo uma especialidade cirúrgica, todos os aspectos inerentes à uma cirurgia plástica são relevantes e devem ser abordados junto com o paciente, tais como as possíveis complicações e a possibilidade de insatisfação com o resultado. O aspecto financeiro deve ser tratado com seriedade e honestidade, evitando preços extorsivos e diferenciados, a sonegação fiscal, e a determinação da conduta cirúrgica de acordo com fatores econômicos.

Finalmente, cabe ao cirurgiao combater a valorizacao excessiva de si proprio, ideias de infalibilidade, e a autoconfianca ilimitada. Estes fatores podem prejudicar a relacao medico paciente (pois as decisoes de conduta dependem da consideracao adequada de cada caso) e interferir na apreciacao critica do resultado pos-operatorio. Portanto, o tratamento apropriado nao consiste apenas da execucao do procedimento, e sim  de uma nocao equilibrada do paciente, do plano cirurgico, e da personalidade do cirurgiao.

A ÉTICA DO DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO

O desenvolvimento tecnológico tem ocorrido de maneira surpreendente em todas as áreas da medicina, ocupando espaço cada vez maior nos veículos de comunicação. Os recentes desenvolvimentos nas áreas de engenharia genética e clonagem deverão influenciar a humanidade de forma revolucionária, iniciando o que já foi chamado de “a era da biotecnologia”. No entanto, a inovação é somente útil quando existe comprovação de sua veracidade. É necessário que as novas técnicas sejam desenvolvidas obedecendo a princípios éticos, sempre com prévia autorização do paciente e utilizando as normas da Convenção de Helsinki, e do Conselho Nacional de Saúde, e, consequentemente, sem ônus ao paciente.

Dentre os fatores principais que devem ser analisados na adoção de uma nova técnica estão suas características, seu perfil de risco/benefício, e aspectos relacionados à curva de aprendizado. Deve-se analisar a reputação do cirurgião que propõe a inovação, considerando aspectos como experiência, capacidade, e competitividade. Conscientes de que a substituição de técnicas consagradas pode ser arriscada, convém analisar a importância da técnica na opinião de outros especialistas, considerando-se se a técnica melhorará os resultados e quais os benefícios de aprendê-la.

Quando uma técnica nova é finalmente adotada, o cirurgião tem a obrigação de informar o paciente, levando em conta as considerações legais de um resultado que pode vir a ser insatisfatório. O Código de Ética Médica, no capítulo “Direitos Humanos”, artigo 46, é bastante claro: “É vedado ao médico efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimentos prévios do paciente ou de seu representante legal, salvo em eminente perigo de vida”.

A divulgação científica das novas técnicas, seja em congressos ou na literatura, é fundamental para o progresso de qualquer especialidade. Os colegas que participam dos conselhos científicos destes eventos devem ser rigorosos na aceitação dos trabalhos ditos inovadores., coibindo assim a realização de pesquisas que são norteadas por fatores como vaidade, interesses financeiros e desonestidade acadêmica. Por outro lado, tanto os resultados positivos quanto os negativos devem ser reportados, pois representam um acréscimo ao desenvolvimento da especialidade. É tão importante saber os procedimentos que deram um bom resultado como conhecer quais as técnicas que não lograram êxito.

Com o advento da manipulação genética, abre-se a excitante possibilidade de se criar o ser humano perfeito. Dentro da cirurgia plástica, porém, determinar as características do embrião poderia violar os princípios éticos de dignidade e autonomia, já que privaria os futuros seres humanos de poder escolher os caminhos de suas vidas.  Além disso, o uso inadequado da tecnologia poderia acentuar as diferenças entre as classes sociais, gerando indivíduos geneticamente superiores (por terem tido acesso às tecnologias graças a seu poder aquisitivo) em relação às pessoas consideradas “normais”. Portanto, cabe à sociedade estimular o crescimento científico, mantendo porém uma atitude de pragmatismo, questionamento, e cuidado, para que a engenharia genética seja empregada da forma mais ética e construtiva possível.

A ÉTICA DO RESPEITO PROFISSIONAL

O número crescente de cirurgiões plásticos tem resultado no aumento da competitividade na relação entre os médicos da especialidade. Outros fatores têm contribuído para este fenômeno, como um mercado que apresenta sinais de saturação, a veiculação de publicidade antiética na mídia, a instabilidade econômica da sociedade, e a realização de cirurgias plásticas por médicos de outras especialidades. Finalmente, questões referentes à sociedade em geral, como educação, valores morais, e a ética da cidadania, exercem um papel preponderante nas relações humanas entre os especialistas. Visando criar um ambiente de convivência construtiva, é fundamental que os profissionais assumam uma postura ética respeitosa de valorização ao trabalho, evitando criticar os colegas publicamente e concentrando seus esforços no crescimento da especialidade e no bem-estar dos pacientes.

A ÉTICA SOCIAL EM CIRURGIA PLÁSTICA

O grau de injustiça social dentro de uma determinada sociedade pode ser avaliado de acordo com a prestação de saúde à população. A qualidade dos resultados acaba sendo claramente diferenciada quando os pacientes menos favorecidos são obrigados a enfrentar filas imensas, hospitais precários, e um atendimento deficiente em termos de tecnologia e acompanhamento pré e pós-operatório. Portanto, as entidades governamentais devem intervir visando aumentar os recursos direcionados à area de saúde, moralizar o atendimento através do combate incansável à corrupção, e uniformizar a qualidade do atendimento médico entre as diferentes camadas sociais da população.

Numa tentativa de atenuar a influência das diferenças sociais, diversos programas humanitários foram criados para oferecer cirurgia reparadora a pacientes menos favorecidos. Nestas iniciativas beneficentes, cirurgias reparadoras sao oferecidas a pacientes que jamais teriam acesso a estes procedimentos devido a fatores financeiros e até geográficos. Os resultados tem sido extremamente gratificantes e torna-se essencial o desenvolvimento de novos projetos com o mesmo objetivo.

A ÉTICA DO MERCADO

A popularizacao das cirurgias estéticas gerou uma questão de fundamental importância: seria o cirurgião plástico um simples prestador de um serviço (que pode ser comprado) ou estaria ele obedecendo aos princípios da profissão altruísta de ser médico? Este dilema intensificou a competição entre os cirurgioes, aumentou a influência de entidades/fatores de controle externo sobre a profissão, e gerou publicidade desrespeitosa e anti-ética que expoe os pacientes publicamente através dos meios de comunicação. A veiculação deste tipo de publicidade tem aumentado o número de iatrogenias, denegrindo a credibilidade da especialidade perante a sociedade. Portanto, é imperativo que alguma forma de normatização e fiscalização seja desenvolvida para coibir estes excessos.

A progressiva diminuição dos reembolsos oferecidos pelas entidades governamentais às cirurgias reparadoras fez com que varios cirurgioes migrassem em direcao aos procedimentos estéticos. Com isso, as necessidades da população menos favorecida, que necessita de procedimentos reparadores (e que não dispõe de recursos para custear uma cirurgia estética), não são atendidas. É fundamental que a postura profissional do cirurgião plástico seja norteada pelo fato de estar beneficiando ao próximo através da realização de cirurgias reconstrutoras independente da remuneração.

CONCLUSÃO

A cirurgia plástica atual tem exercido uma função primordial na sociedade, oferecendo felicidade e harmonia a um número significativo de pacientes.  Para continuar propiciando aos pacientes um atendimento profissional, honesto, e cientificamente correto, é necessário que a bioética seja institucionalizada. Desta forma, poderemos resolver os conflitos que ameaçam a integridade do paciente e  garantiremos a postura ética do cirurgião plástico em sua prática profissional.